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| Zilan da Costa e Silva | Há momentos em que a história se curva e o tempo parece condensar décadas em poucos anos, como se a pressa dos homens respondesse a uma convocação secreta do destino. A experiência chinesa das Zonas Econômicas Especiais pertence a esse gênero raro de acontecimentos em que a política, a economia e a imaginação coletiva se fundem numa só força de transformação. Não é possível compreender a China contemporânea sem compreender Shenzhen e suas irmãs; não é possível entender o salto civilizatório que retirou da pobreza centenas de milhões de pessoas sem ver que tudo começou em pequenas parcelas de território cercadas não por muros, mas por exceções jurídicas, arranjos institucionais, incentivos calibrados e, sobretudo, por uma fé pragmática de que a realidade pode ser transformada pela arquitetura da norma.
As Zonas Econômicas Especiais não nasceram como dogma, mas como tentativa. A China que emergia do tumulto da Revolução Cultural era um país exausto, agrário, desconfiado do mundo exterior, mas ciente de que não poderia sobreviver isolado. Foi Deng Xiaoping quem, com o olhar de estadista que enxerga adiante, lançou a máxima célebre de que não importava a cor do gato, contanto que caçasse ratos. Mas a metáfora, que tantos repetem, oculta a complexidade do gesto. Não se tratava apenas de caçar ratos, mas de domar o tempo, de fazer da exceção um método, de aceitar que a lei poderia ser dobrada em certas geografias para que o futuro pudesse se ensaiar. Assim nasceram Shenzhen, Zhuhai, Shantou e Xiamen em 1979, e com elas o laboratório do mundo.
O que significa criar um laboratório de desenvolvimento em escala territorial? Significa, antes de tudo, aceitar que a ordem não é estática. Michel Foucault falava das heterotopias como lugares onde a realidade se reflete e se distorce; as ZEEs foram heterotopias econômicas, espaços em que o socialismo se permitia conviver com o capital, em que a planificação coexistia com o mercado, em que o velho sistema jurídico da propriedade estatal da terra se abria a direitos de uso alienáveis, leiloados, listados em mercado. A terra tornou-se, nesses espaços, não uma dádiva imutável do Estado, mas um fator econômico passível de ser transacionado, e isso foi revolucionário. Mais revolucionário, talvez, do que as fábricas de montagem que primeiro se instalaram. Porque quando a terra se torna flexível, todo o edifício institucional se reconfigura, e a sociedade aprende que regras podem mudar, que o futuro pode ser escrito por decreto, desde que o decreto esteja em sintonia com a necessidade.
É por isso que os livros que analisam a trajetória chinesa insistem tanto na ideia de experimentação. Wang Linggui repete que não há modelo a ser transplantado, porque o que define a experiência é justamente a ausência de modelo fixo, a disposição de tentar, errar, corrigir, ampliar. Yiming Yuan descreve como cada avanço em Shenzhen era acompanhado por relatórios, avaliações, comparações, e como o que funcionava era então expandido a outras zonas, e depois ao país inteiro, em um processo que lembrava menos um plano rígido e mais uma aprendizagem coletiva. O país aprendeu fazendo, mas aprendeu com disciplina: havia métricas, havia autoridades de zona com poderes quase provinciais, havia a capacidade de corrigir rumos e impor metas. Não era anarquia; era pragmatismo organizado.
O resultado desse pragmatismo foi vertiginoso. Shenzhen, que nos anos 1970 era uma vila de pescadores, tornou-se em três décadas uma metrópole de mais de dez milhões de habitantes, com PIB superior ao de países inteiros, polo de inovação tecnológica, sede de gigantes como Huawei e Tencent. O caminho foi da montagem barata à eletrônica de precisão, do têxtil à inteligência artificial. Esse salto não teria sido possível sem o mecanismo das zonas, porque foi ali que se ensaiaram regimes de propriedade intelectual, joint ventures com empresas estrangeiras, incentivos fiscais calibrados, infraestrutura logística integrada entre portos, aeroportos e parques industriais.
Mas há sempre o lado obscuro. O milagre da China foi também o milagre do trabalho migrante, das massas que deixaram o campo para habitar dormitórios coletivos e trabalhar jornadas exaustivas. Foi o milagre de cidades que cresceram mais rápido do que podiam ser planejadas, de riscos ambientais que precisaram ser contidos a posteriori, de bolhas imobiliárias que ameaçaram corroer o edifício. Foi o milagre de desigualdades regionais, entre o litoral próspero e o interior esquecido. Só a intervenção deliberada do Estado, criando zonas piloto no oeste, corredores de desenvolvimento, políticas redistributivas, impediu que a China se tornasse dois países em um.
É aqui que a filosofia se encontra com a economia. Ernst Bloch falava da utopia concreta, aquela que não é fantasia distante, mas possibilidade real inscrita no presente. As ZEEs foram utopias concretas: territórios em que se viveu o futuro antes de ele chegar, em que se encenou a modernidade em miniatura para depois difundi-la. O que se ensaiava em Shenzhen não era apenas uma política industrial, era uma narrativa. Shenzhen tornou-se mito, vitrine, símbolo da China que podia ser rica, moderna, urbana, tecnológica. O mito mobiliza, porque desenvolvimento também precisa de imaginação.
A gênese das quatro zonas originais da China é quase uma cena de teatro político: o Partido, recém-saído das sombras da Revolução Cultural, autoriza em 1979 a criação de espaços experimentais em Shenzhen, Zhuhai, Shantou e Xiamen. A escolha não foi aleatória. Shenzhen, fronteiriça a Hong Kong, poderia sugar a energia do capital e da expertise financeira da antiga colônia britânica. Zhuhai, próxima de Macau, simbolizava a abertura a um enclave ainda sob administração portuguesa. Shantou carregava uma diáspora espalhada pelo sudeste asiático, capaz de atrair investimentos de retorno. E Xiamen tinha diante de si o desafio e a promessa de Taiwan, a ilha capitalista de origem chinesa que a qualquer momento poderia ver no litoral de Fujian um espelho de reconciliação econômica. As quatro zonas eram pontes, cada uma voltada a um mundo distinto, como se a China estendesse mãos cautelosas a direções diferentes, sem saber qual delas traria o primeiro fruto.
No início, quase nada havia. Shenzhen era uma vila de pescadores com menos de cinquenta mil habitantes. Em 1980, mal havia estradas asfaltadas. Mas o decreto criava ali um regime novo: investidores estrangeiros podiam participar de joint ventures com até 100% de capital próprio, fábricas poderiam importar insumos sem tarifas alfandegárias, a terra podia ser concedida em uso por prazos longos, com direito de transferência. Tudo isso em um país onde, até então, a ortodoxia socialista proibia a propriedade privada da terra, mantinha rígidos controles de comércio exterior e punia o enriquecimento individual. O que nascia em Shenzhen era um choque frontal com a ideologia, mas um choque delimitado por perímetros e guardado pelo Partido como se fosse uma aposta controlada.
E funcionou. Nas primeiras fábricas, que produziam brinquedos e têxteis para exportação, chegavam empresários de Hong Kong, depois japoneses, coreanos, ocidentais. Os migrantes vinham do interior em ondas: jovens, sobretudo mulheres, dispostas a aceitar jornadas longas em troca de salários que, ainda modestos, eram muito mais altos que os do campo. O Produto Interno Bruto de Shenzhen cresceu a taxas de dois dígitos durante toda a década de 1980. Zhuhai seguiu com mais lentidão, Shantou enfrentou dificuldades, Xiamen prosperou de modo equilibrado. Mas a experiência geral era incontestável: a abertura localizada funcionava.
Esse primeiro ciclo revelou um traço fundamental do modelo: a capacidade de usar a exceção como método. A exceção, porém, não era arbitrária; era cuidadosamente circunscrita, relatada, avaliada, e depois expandida. O Estado chinês fez da exceção uma tecnologia de governo. Em 1984, diante do sucesso inicial, o experimento foi ampliado a 14 cidades costeiras, entre elas Xangai, Tianjin, Dalian, Guangzhou. Mas ainda era Shenzhen o símbolo, e é significativo que, em 1992, quando Deng Xiaoping sentiu o risco de retrocesso após o massacre da Praça da Paz Celestial, tenha escolhido Shenzhen para sua famosa “viagem ao sul”, a nanxun. Ali, diante de fábricas e arranha-céus em ascensão, reafirmou que “desenvolvimento é a verdade inquestionável”. O gesto foi performático: não era no Parlamento, nem no Comitê Central, mas no espaço da exceção que se proclamava a ortodoxia do futuro.
Nos anos 1990, o passo seguinte foi decisivo: Pudong, em Xangai. Se Shenzhen nascera como posto avançado junto a Hong Kong, Pudong seria a porta para o mundo inteiro. À beira do Huangpu, diante do Bund colonial e do skyline cinzento da velha metrópole, ergueu-se uma cidade nova, planejada como distrito financeiro e tecnológico. O Lujiazui, com sua torre Pérola Oriental, tornou-se o cartão de visita da China moderna. Ali não se tratava mais apenas de fábricas de exportação, mas de bancos, corretoras, multinacionais de serviços. A exceção agora não era só industrial; era também financeira e urbana. Pudong mostrou que as ZEEs não eram apenas zonas industriais, mas plataformas integrais de modernização, capazes de reconfigurar uma cidade inteira em uma década.
A estratégia seguiu o mesmo padrão: experimentar, avaliar, expandir. Nas décadas seguintes, a China espalhou zonas especiais para o interior: Chongqing, Chengdu, Xi’an, cidades que antes eram sinônimo de atraso, receberam zonas piloto, corredores logísticos, parques de alta tecnologia. O objetivo era claro: evitar que a abertura se transformasse em um litoral próspero diante de um interior estagnado. O desafio era monumental, porque o interior carecia da proximidade com mercados internacionais. Mas a lógica das ZEEs, adaptada, permitiu criar polos de manufatura automotiva, eletrônica, química, e mais tarde parques digitais.
Os relatórios anuais, como o Blue Book of Special Economic Zones, mostram a escala dessa transformação. Entre 1980 e 2018, as ZEEs responderam por mais de 20% do PIB chinês, atraíram mais da metade do investimento estrangeiro direto, geraram dezenas de milhões de empregos urbanos. Shenzhen sozinha, em 2018, exportava mais do que muitos países latino-americanos juntos. O salto em P&D foi notável: enquanto no início as zonas eram oficinas de montagem, nos anos 2000 já concentravam patentes, universidades, centros de pesquisa, parques de inovação. O ciclo completo do desenvolvimento — da oficina ao design, do design à invenção — se condensou em poucos decênios.
Mas a grandiosidade dos números não deve ocultar a filosofia implícita. As zonas ensinaram ao povo chinês que a norma pode ser flexível, que a lei pode ser reinventada. Ensinaram ao Partido que a ideologia pode conviver com a prática heterodoxa sem se dissolver. Ensinaram ao mundo que o Estado pode ser ao mesmo tempo controlador e inovador, disciplinado e experimental. É aqui que o paralelo com Foucault e com a noção de heterotopia ganha sentido: a ZEE é um espaço outro, em que o real é desviado, em que o futuro se encena. Mas não é apenas espaço; é também tempo. É cronotopia: a dobra do tempo histórico em um território delimitado.
Hegel talvez sorrisse diante dessa dialética: o socialismo que sobrevive criando o capital, o capital que floresce sob tutela do socialismo. Marx, se ressuscitasse, talvez se inquietasse: veria na China a prova de que a superestrutura pode reinventar a base, de que a política pode preceder a economia. Arendt lembraria que a ação humana é sempre imprevisível, e que o milagre da liberdade reside justamente na capacidade de começar. As ZEEs são começos repetidos, milagres institucionais que mostram a plasticidade do humano diante do tempo.
E como ignorar o contraste com o Brasil? Nos anos 1960 e 1970, o regime militar criou a Zona Franca de Manaus, um enclave fiscal na Amazônia destinado a promover desenvolvimento regional e integração nacional. Por um tempo, cumpriu o papel simbólico: televisores e motocicletas fabricados na floresta eram sinais de modernidade. Mas a estrutura cristalizou-se em renúncia fiscal permanente, pouco integrada às cadeias globais, dependente do consumo interno e vulnerável às mudanças de tributação. Quando o Brasil tentou criar Zonas de Processamento de Exportação nos anos 1980 e 1990, os projetos emperraram em burocracia, falta de infraestrutura, insegurança regulatória. O que a China fez com disciplina, nós fizemos com improviso. Onde eles criaram laboratórios, nós criamos exceções; onde eles experimentaram, nós distribuímos favores, criamos privilégios.
Olhando para o Vietnã, percebe-se outro caminho. Inspirado pela China, criou zonas costeiras, parques industriais, regimes aduaneiros simplificados. O investimento estrangeiro chegou em eletrônicos, têxteis, calçados. O país tornou-se parte das cadeias asiáticas. Mas mesmo ali os gargalos são claros: a infraestrutura ainda é insuficiente, a dependência de multinacionais é elevada, a inovação local é limitada. O que o Vietnã mostra é que copiar não basta; é preciso internalizar.
Dubai, por sua vez, encarnou o outro extremo: fez das free zones instrumentos de velocidade e conveniência. Em Jebel Ali, uma empresa se instala em dias, com 100% de propriedade estrangeira, sem impostos, com integração portuária e aeroportuária de primeira linha. Mas o risco é o enclave puro: a riqueza circula, mas pouco se enraíza. É a lógica do hub, não a da nação. A China, ao contrário, sempre quis que a riqueza se enraizasse, que os fornecedores locais fossem integrados, que os clusters se formassem.
E há Ruanda, pequeno, sem mar, que mesmo assim decidiu criar uma zona em Kigali, com títulos de terra claros, facilidades aduaneiras, incentivos calibrados. Em escala modesta, funcionou: o país atraiu manufaturas leves, agroindústrias, serviços. Mas a escala impõe limites.
Esses exemplos apenas reforçam a singularidade da experiência chinesa. Ela mostra que o segredo não está na renúncia fiscal, nem no perímetro, nem na promessa de mão de obra barata. O segredo está na governança: autoridade de zona com poderes reais, mandato claro, métricas de desempenho, capacidade de errar e corrigir. Está na filosofia política: fazer da exceção um método, da utopia uma prática. Está na narrativa: fazer do espaço um símbolo que mobiliza a sociedade inteira.
Se o Brasil deseja aprender, deve aprender isso: não é imitando incentivos, nem copiando decretos, que se cria um Shenzhen. É criando laboratórios onde a norma é flexível, onde a burocracia é simplificada, onde os prazos são curtos, onde a estabilidade é garantida. É escolhendo setores estratégicos, conectados a cadeias globais, mas também capazes de criar raízes locais. É usando as zonas não como fim, mas como meio de difundir práticas ao país inteiro.
O mundo contemporâneo exige novos laboratórios. A China mesma já não depende apenas de fábricas de montagem, mas cria Zonas de Livre Comércio de nova geração, voltadas a finanças, serviços digitais, economia verde. Para nós, brasileiros, a lição é clara: precisamos de zonas que sejam laboratórios da transição energética, da bioeconomia amazônica, da indústria farmacêutica, da tecnologia digital soberana. Zonas que sejam símbolos, como Shenzhen foi para a China. Sem mito, não há mobilização.
Ao entrarmos no século XXI, o experimento chinês já não podia ser descrito apenas como uma coleção de zonas costeiras. O que começou em Shenzhen se tornara uma lógica de Estado, uma gramática inteira de governança. As Zonas Econômicas Especiais haviam deixado de ser marginais para se tornarem centrais; deixaram de ser exceção para se tornarem paradigma. O Blue Book sobre as ZEEs registra, por exemplo, que no início dos anos 2000 mais da metade do investimento estrangeiro direto que ingressava na China passava pelas zonas; que a produtividade industrial nelas era superior à média nacional; que a urbanização acelerada era em grande parte produto de seus pólos. A cidade de Shenzhen, que em 1980 tinha menos de 100 mil habitantes, chegava em 2020 com mais de 12 milhões. Mas não era só quantidade. Era qualidade: centros de pesquisa, universidades, patentes, startups, capital de risco. O que começou como montagem de brinquedos tornara-se ecossistema de inteligência artificial e telecomunicações.
As estatísticas ajudam a compreender a magnitude. Entre 1980 e 2018, as zonas contribuíram com cerca de 22% do PIB nacional, segundo Yitao Tao e Yiming Yuan. Mais de 30 milhões de empregos diretos urbanos estavam vinculados às ZEEs. O IDE acumulado ultrapassava centenas de bilhões de dólares, vindos primeiro do Japão, Coreia, Hong Kong e depois dos Estados Unidos e Europa. Mas a partir dos anos 2000, o fluxo começou também a ser interno: empresas chinesas, já maduras, reinvestiam nas próprias zonas, criando o ciclo de inovação endógeno. Esse é o sinal da maturidade: quando o estrangeiro já não é indispensável, mas opcional.
Não é possível ignorar as contradições. O crescimento veloz trouxe desigualdade, degradação ambiental, exploração trabalhista. As fábricas de Guangdong nos anos 1990 eram famosas por seus dormitórios coletivos, por jornadas de 12 ou 14 horas, por greves e conflitos trabalhistas. O custo humano do milagre foi alto. O Estado, aos poucos, reagiu: introduziu legislação trabalhista, ampliou seguridade social, investiu em habitação, controlou a especulação imobiliária. Mas o problema nunca desapareceu. Hoje, Shenzhen é também símbolo do preço da modernidade: habitação cara, pressão sobre a juventude, riscos de bolhas.
Há também o risco geopolítico. As zonas foram criadas para integrar a China ao mundo. E integraram. Mas essa integração trouxe dependência de mercados externos, vulnerabilidade a crises financeiras, exposição a guerras comerciais. O caso recente da disputa com os Estados Unidos sobre tecnologia 5G mostra como a interdependência é ao mesmo tempo força e fragilidade. O que se construiu como laboratório de abertura pode, em um mundo de rivalidade geopolítica, se tornar vulnerabilidade estratégica. A resposta chinesa tem sido redobrar a aposta em inovação local, em substituição tecnológica, em soberania digital. O espírito da exceção continua, agora voltado à autossuficiência.
Ao refletirmos sobre esse processo, é impossível não retornar à filosofia. Ernst Bloch falava que o futuro é a categoria mais importante do pensamento humano, porque é ele que nos permite agir. As zonas são isso: futuros concretos, pedaços do amanhã encenados no presente. Walter Benjamin dizia que a história é um anjo arrastado para o futuro enquanto olha para as ruínas do passado. A China das ZEEs é esse anjo: constrói arranha-céus e clusters enquanto as sombras do campo atrasado e das fábricas precárias ainda pesam. Mas ao olhar para trás, transforma ruína em recurso.
Para o Brasil, a lição é dura. Tivemos nossas próprias zonas: a Zona Franca de Manaus, as tentativas de ZPEs. Mas nunca ousamos fazer da exceção um método. Nossas zonas se tornaram privilégios fiscais, não laboratórios institucionais. A burocracia nunca foi simplificada, os prazos nunca foram respeitados, as métricas nunca foram claras. O pacto federativo, fragmentado, impediu a coordenação. Enquanto a China criava autoridades de zona com poderes reais, nós criávamos órgãos sem dentes. Enquanto eles vinculavam as zonas a uma estratégia nacional de longo prazo, nós as subordinávamos a barganhas políticas.
Mas nada disso é destino. O Brasil pode ainda reinventar suas zonas. A Amazônia, por exemplo, poderia se tornar laboratório da bioeconomia, com direitos de uso da biodiversidade regulados, com inovação em fármacos, com incentivos à pesquisa. Os portos do Nordeste poderiam ser zonas piloto de logística verde, com energia eólica e solar integradas, com hidrogênio verde exportável. O Sul poderia criar zonas digitais, com soberania de dados, com clusters de software. Mas para isso é preciso aprender a lição: zona não é privilégio; é laboratório. Zona não é renúncia fiscal; é encadeamento produtivo. Zona não é barganha; é projeto.
As comparações internacionais reforçam essa ideia. O México mostra o que acontece quando a zona se integra a uma cadeia, mas não sobe a escada tecnológica: dependência. O Vietnã mostra o que acontece quando se copia sem inovar: gargalos. Dubai mostra o risco do enclave puro: riqueza sem raízes. Ruanda mostra que é possível mesmo em pequena escala, mas que a escala impõe limites. Só a China mostrou que a exceção pode se tornar método, que a zona pode se tornar nação.
E aqui entramos na dimensão simbólica. Shenzhen é mito. Pudong é mito. São símbolos visíveis do futuro. O Brasil carece desse mito. Manaus já não cumpre esse papel. Precisamos de um Shenzhen brasileiro, de um Pudong amazônico, de um símbolo que mobilize a imaginação. Sem mito, não há mobilização.
A filosofia política nos ensina que o poder não é apenas coerção, mas também narrativa. Maquiavel já sabia: governar é também convencer. Hannah Arendt dizia que a política é espaço de aparição, de ação visível. As ZEEs são isso: espaços visíveis onde o futuro aparece. O Brasil precisa de seus próprios espaços de aparição, de suas próprias heterotopias, de suas próprias utopias concretas.
E se não ousarmos, ficaremos para trás. O mundo caminha para uma nova fase: transição energética, economia digital, soberania tecnológica. A China já cria zonas de livre comércio de nova geração, voltadas a serviços digitais, à economia verde, à inovação em blockchain. O Brasil não pode se contentar com exceções fiscais herdadas dos anos 1960. Precisa criar laboratórios do século XXI.
Ao final, a lição chinesa é clara. Desenvolvimento não é destino, é escolha. Não é dádiva, é projeto. Não é acaso, é desenho institucional. As zonas mostram que é possível governar a incerteza, transformar espaço em laboratório, tempo em aliado. Mostram que a exceção pode se tornar regra, que a utopia pode se tornar prática. Mostram que o futuro pertence a quem o ensaia.
E nós, brasileiros, diante do dragão que se ergueu de uma vila de pescadores, precisamos decidir: seremos eternamente sabiás que cantam à sombra, ou ousaremos também voar?
Para aprofundar mais:
Yuan, Yiming. Studies on China’s Special Economic Zones (vols. 2, 3 e 5).
Tao, Yitao & Yuan, Yiming (eds.). Annual Report on the Development of China’s Special Economic Zones (Blue Book).
Tao, Yitao & Lu, Zhiguo. Special Economic Zones and China’s Development Path.
Wang, Linggui (ed.). China’s Development and the Construction of the Community with a Shared Future for Mankind.
Yin, Jun & Xu, Jia. China’s Plan for Economic and Social Development.
Vogel, Ezra. Deng Xiaoping and the Transformation of China.
Naughton, Barry. The Chinese Economy: Transitions and Growth.
Coase, Ronald & Wang, Ning. How China Became Capitalist.
Lin, Justin Yifu. Demystifying the Chinese Economy.
World Bank. Special Economic Zones: Progress, Emerging Challenges, and Future Directions.
UNCTAD. World Investment Report.
Farole, Thomas & Akinci, Gokhan. Special Economic Zones: Progress, Emerging Challenges and Future Directions.
Zeng, Douglas Zhihua. Building Engines for Growth and Competitiveness in China: Experience with Special Economic Zones and Industrial Clusters.
Allison, Graham. Destined for War: Can America and China Escape Thucydides’s Trap?
Mearsheimer, John. The Tragedy of Great Power Politics.
Kissinger, Henry. On China.
Shambaugh, David. China Goes Global: The Partial Power.
Foucault, Michel. Of Other Spaces.
Bloch, Ernst. Das Prinzip Hoffnung.
Benjamin, Walter. Über den Begriff der Geschichte.
Arendt, Hannah. The Human Condition.
Beck, Ulrich. Risk Society: Towards a New Modernity.
National Bureau of Statistics of China (NBS).
Ministry of Commerce of the People’s Republic of China (MOFCOM).
Banco Mundial – World Development Indicators.
UN Comtrade Database.
Fonte: Portal E aí | Foto: Israel Museum, Jerusalem
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