Acordos Brasil-China e as ZPEs

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Nos últimos dias, o mundo foi surpreendido com a notícia de que Brasil e China assinaram 15 acordos que fomentam a cooperação entre os dois países em diversas áreas, como comércio e indústria, comunicação, inovação, pesquisa e tecnologia, inclusive para realizar transações comerciais com suas moedas, com o intuito de diminuir a dependência do dólar nas exportações e importações entre si.

Sabendo que a China é o maior parceiro comercial do Brasil, e representa mais de 20% de todas as importações brasileiras, será instituído grupo de trabalho entre Itamaraty e Ministério de Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços com o Ministério do Comércio da China, com objetivo de buscar soluções para evitar barreiras desnecessárias, promover a troca de informações e medidas de facilitação de comércio com vistas a tornar mais ágil a circulação, a liberação e o despacho aduaneiro de bens.

Os principais setores que devem se beneficiar de acordos comerciais entre Brasil e China são de soja, carnes bovinas, tecidos, infraestrutura, minérios e óleo e gás. Esses segmentos da indústria ajudaram a atingir os mais de US$ 150 bilhõesentre relações comerciais envolvendo os países em 2022, trazendo um saldo positivo de R$ 16 bilhões para a balança comercial brasileira. 

A constatação mais óbvia agora talvez seja o fato do uso do dólar como parâmetro para as relações em comércio internacional começar a ser questionado, mas o que deve saltar aos olhos é o fato da China, em 40 anos, ter multiplicado suas exportações em 100 vezes (e agora conseguir barganhar alteração de moedas em acordos de comércio internacional, algo não mais visto desde o fim da Segunda Guerra Mundial, quando o dólar assumiu a posição do ouro) enquanto o Brasil cresceu pouco mais de 10 vezes .

Em verdade, a China vivenciou um tipo de industrialização que se diferenciou da maioria dos processos ocorridos nos demais territórios do planeta. O desenvolvimento industrial chinês ocorreu ao longo do século 20 e foi regulado pela forte presença do Estado. Uma das principais características desse processo foi a demarcação das Zonas Econômicas Especiais, como bem explica Loretta Napoleoni em sua obra Maonomics, que, no meu sentir, é uma das melhores sobre o “fenômeno” econômico chinês.

As ZEEs da China foram criadas pelo governo Deng Xiaoping (1982-1987) e mantidas pelos governos ulteriores e consideradas como o principal marco da transição chinesa do comunismo (ou capitalismo de Estado, na visão de alguns especialistas) para o capitalismo de economia de mercado.

As ZEEs chinesas consistem em áreas especificamente destinadas para o direcionamento da atividade industrial a partir do oferecimento de vantagens para atrair investimentos estrangeiros. Um dos seus principais objetivos era alavancar a produção industrial da China, que se encontrava em crise desde a década de 1960, e fortalecer o volume total de exportações – metas claramente atingidas com sucesso[5].

Outra característica peculiar das Zonas Econômicas Especiais é o fator empregatício, haja vista que a instalação das fábricas e indústrias estrangeiras demandam uma grande quantidade de mão de obra, qualificada e não qualificada. Nesse passo, as empresas estrangeiras que desejassem instalar-se no território da China deveriam associar-se com uma empresa local, em uma prática conhecida como Joint Venture.

Do outro lado, as multinacionais encontraram um terreno fértil nas ZEEs: uso de mão de obra muito barata e abundante, facilidade de acesso às matérias-primas do país, infraestrutura adequada para rápida exportação, acesso ao amplo mercado consumidor do país sem a passagem dos produtos por barreiras e tarifas alfandegárias, além de baixos impostos locais, incluindo a isenção fiscal para a importação de produtos e maquinários industriais.

E o exemplo contagia.

No Brasil, em 1988, foi instituído as zonas de processamento de exportação, regime aduaneiro especial, através do Decreto-Lei 2.452/88. Na época, o referido instrumento legal autorizou ao Poder Executivo a criar ZPE por meio de edição de decreto presidencial. Ademais, para traçar a orientação da política das ZPE, estabelecer requisitos, analisar propostas, dentre outras atividades, o normativo também criou o Conselho Nacional das Zonas de Processamento de Exportação (CZPE).

Em 2007, o citado Decreto-Lei foi revogado pela Lei 11.508/07, que manteve a competência do Conselho para definir os procedimentos, as normas e os parâmetros do programa. Para regulamentar a Lei 11.508/07 foram publicados os Decretos 9.993/2019, que dispõe sobre o CZPE, e o 6.814/2009, que dispõe sobre o regime tributário, cambial e administrativo das ZPE.

Nascidas a partir da ideia de se promover nas regiões menos desenvolvidas a redução dos desequilíbrios, de fortalecer o balanço de pagamentos, assim como da ideia de promover a difusão tecnológica e o desenvolvimento econômico e social do país, a ZPE brasileira é uma área de livre comércio com o exterior, destinada à instalação de empresas voltadas para a produção de bens a serem comercializados no exterior, sendo considerada zona primária para efeito de controle aduaneiro.

As empresas que se instalam em ZPE têm acesso a tratamentos tributário diferenciado em relação ao ICMS, por meio da concessão de isenção do ICMS nas importações e nas compras no mercado interno, regulada pelo Convênio ICMS 99/1998, além de poderem usufruir  da suspensão de impostos e contribuições, tais como Imposto de Importação, IPI, PIS, Cofins, PIS-Importação e Cofins-Importação bem como o Adicional do Frete da Marinha Mercante tanto nas aquisições no mercado interno quanto nas importações, bem como gozarem de “liberdade cambial”, podendo manter no exterior, permanentemente, 100% das divisas obtidas nas suas exportações.

Obviamente, não basta existir o benefício é necessário saber usufruir[6]: contar com adequada infraestrutura, aproveitamento das potencialidades locais e regionais, integração com atividades econômicas regionais e nacionais, disponibilidade de mão-de-obra capacitada, ambiente de negócios favorável, segurança jurídica e incentivos estaduais e municipais também serão fundamentais para o sucesso de uma ZPE.

E apesar do tema não ser disseminado, já existem 14 ZPEs espalhadas por todo o território nacional, boa parte no eixo Norte-Nordeste, em Suape (PE), Ilhéus (BA), Macaíba (RN), Parnaíba (PI), Araguaína (TO), Pecém (CE), além de outras localizadas nos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro, Mato Grosso e Acre.

Por conseguinte, em 2021 foi promulgada a Lei 14.184, o marco legal das ZPEs,  que modernizou o funcionamento desse modelo, permitindo, inclusive, que a instalação de ZPE pudesse ocorrer à uma distância de 30 km do conjunto das áreas segregadas destinadas à movimentação, à armazenagem e à submissão a despacho aduaneiro de mercadorias procedentes do exterior ou a ele destinadas.

Contudo, a referida legislação prevê que o ato de criação de ZPE será cassado no prazo de 24 meses se, contado da publicação do ato de criação, a administradora da ZPE não tiver iniciado as obras de implantação, sem motivo justificado, de acordo com o cronograma previamente apresentado ao Conselho Nacional das Zonas de Processamento de Exportacão para fins de planejamento das obras de infraestrutura da ZPE ou se as obras de implantação não forem concluídas, sem motivo justificado, no prazo de 12 meses, contado da data prevista para sua conclusão, constante do cronograma previamente apresentado ao CZPE para fins de planejamento das obras de infraestrutura da ZPE.

E adivinhem? Apesar de muitas áreas terem sido enquadradas legalmente como ZPEs, poderão perder seus benefícios por falta de uso ou aproveitamento devido. Sabendo que a fórmula funciona e os chineses não me deixam errar, me parece que é chegada a hora de falarmos mais sobre zonas de processamento de exportação.

Anna Dolores Barros de Oliveira Sá Malta, advogada especializada em Direito Tributário e Aduaneiro.

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