A hora de decisão: ou tornamos as ZPEs competitivas, ou é melhor extingui-las em definitivo.

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A HORA DE DECISÃO: OU TORNAMOS AS ZPES COMPETITIVAS, OU É MELHOR EXTINGUI-LAS EM DEFINITIVO

Helson Braga, Ph.D., presidente da ABRAZPE

The institutions a society develops or fails to develop… provide an important indicator of that society’s capacity for development” (Pranab Bardhan, University of California, Berkeley, USA).

  1. O programa das Zonas de Processamento de Exportação (ZPEs) sobrevive por três décadas (ele foi criado pelo presidente José Sarney em 1988) ao efeito conjunto de dois equívocos evidentes: de parte do setor industrial, temeroso da concorrência associada à venda de parcela da produção no mercado interno (o equívoco está no fato de essa venda estar sujeita ao pagamento de todos os tributos, como nas importações normais); e de parte da administração fiscal, que teme perda de arrecadação (o equívoco, no caso, está no fato de que estamos tratando de investimentos novos, que não existiam ainda e, por definição, não há arrecadação a ser perdida).
  2. Essa visão equivocada – e a pressão política dela decorrente – se refletiu na má qualidade da legislação e no pouco entusiasmo da área do governo encarregada da implementação do programa. Na verdade, em duas oportunidades, até tentou-se extinguir o mecanismo, que somente não se concretizou em razão da mobilização coordenada pela Associação Brasileira de Zonas de Processamento de Exportação (ABRAZPE), que sempre apostou no potencial desenvolvimentista do programa e na sua compatibilidade com o restante da política econômica.
  3. Como resultado, o Brasil perdeu um tempo precioso ao deixar de utilizar um instrumento empregado por mais de uma centena de países, entre os quais os Estados Unidos e a China, que tem nas ZPEs, ou mecanismos similares, um elemento central de suas políticas de desenvolvimento. Organismos internacionais, como o Banco Mundial, a UNIDO, a UNCTAD e a OCDE apoiaram a implantação de ZPEs em várias partes do mundo, como uma forma controlada de abertura comercial e de ampliação e diversificação da pauta de exportação.
  4. Em 2007, conseguimos uma ligeira melhora da legislação (ao aprovar a Lei 11.5018/2007, depois de 12 anos de “batalha” no Congresso Nacional), mas que se revelou insuficiente para produzir os resultados esperados pelos governos estaduais e pela iniciativa privada, que acreditaram na seriedade da proposta e realizaram pesados investimentos. Das 26 ZPEs criadas, ao longo desses anos, só conseguimos implantar uma delas, a do Ceará, onde já funciona uma siderúrgica de US$ 5,4 bilhões, que exporta quase toda a sua produção e, a rigor, não precisa do mercado interno.
  5. Em 2011, iniciamos novo esforço para, finalmente, tornar a legislação competitiva e capaz de preencher as expectativas com que as ZPEs foram criadas. O  PLS  764/2011 foi apresentado pela senadora Lídice da Mata (PSB/BA) e aprovado por duas comissões e pelo plenário do Senado. Ao chegar à Câmara dos Deputados, onde tomou o número 5.957/2013, o PL foi aprovado por quatro comissões e deverá ser votado no plenário da Casa, neste começo de ano.
  1. Nessa tramitação, o projeto foi objeto de amplo e democrático processo de discussão e negociação, quando todos aqueles que tinham alguma contribuição a oferecer puderam expor seus pontos de vista e suas sugestões, inclusive as várias áreas do Governo Federal e da indústria, que produziram notas técnicas e interagiram com os relatores do projeto nas duas Casas do Legislativo.
  2. É essencial entender que o programa das ZPEs só se justifica na medida em que formos capazes de torná-lo competitivo em relação aos modelos existentes em outros países. Caso contrário, as empresas estrangeiras preferirão ir para outros ambientes mais amigáveis, e as empresas brasileiras que precisarem das condições oferecidas pelas ZPEs para desenvolver suas operações no exterior, farão a mesma coisa, como mostra a migração para a China e o Paraguai, que está atraindo nossas empresas com o seu programa de “maquila”, como tem sido amplamente divulgado.
  3. O fato de as ZPEs “não terem saído do papel”, três décadas desde que foram criadas, é uma evidência definitiva de que algo está fundamentalmente errado com o modelo atual e, se alguma mudança substantiva não for implementada – seja nas suas características operacionais, seja na visão que dele têm a burocracia governamental e os representantes da indústria -, o mais racional será simplesmente extinguir o programa, e não perdermos mais tempo com a criação de mais um “regime aduaneiro especial”, semelhante aos que já existem.
  4. Resumidamente, o PL 5.957/2013 aperfeiçoa o programa das ZPEs segundo quatro eixos, que se apoiam em justificativas sólidas e demonstráveis:
    1. O aumento da parcela da receita bruta passível de venda no mercado interno (hoje, fixada em 20%), em condições corretas;
    2. A inclusão dos serviços exportáveis (e não apenas aqueles de apoio às indústrias instaladas nas ZPEs, que já estão disciplinados) entre as atividades beneficiadas pelo regime;
    3. A ampliação do escopo para abranger outras desonerações tributárias (como a CPRB) e outros itens (como partes e peças) já contemplados por regimes similares de estímulo à exportação de manufaturados e ao investimento (como o RECOF e o drawback); e
    4. A possibilidade de implantação de atividades/setores cujas vendas no mercado interno já são equiparadas à exportação (como o setor de óleo & gás, a construção naval e a indústria de defesa).
  5. Estas mudanças propostas pelo PL 5.957/2013 obedecem, estritamente, às seguintes premissas (também demonstráveis):
    1. As vendas no mercado interno não criam concorrência desleal com quem está fora das ZPEs, uma vez que sobre tais vendas incidem todos os tributos normalmente cobrados nas importações;
    2. São compatíveis com as normas internacionais, especialmente as da Organização Mundial de Comércio;
    3. Não dependem de recursos do Tesouro Nacional, na medida em que os investimentos são bancados pela iniciativa privada e, em parcela minoritária, pelos governos estaduais; e
    4. Não acarretam perda de arrecadação, dado que (i) os incentivos somente estarão disponíveis para investimentos novos, que, por definição, não geram receitas (e, portanto, nada estará sendo perdido); (ii) as exportações já gozam de imunidade constitucional; e (iii) as vendas internas pagarão todos os tributos incidentes na operação.
  1. Há três divergências principais entre a visão acima e a que está contida em um texto alternativo, que está circulando como sendo a “posição do governo”, o qual:
    1. Mantém a cobrança de uma multa (que é um tipo de penalidade), que pode chegar a 20% do valor dos tributos suspensos quando da importação de insumos, e pode inviabilizar as vendas no mercado interno;
    2. Não contempla a instalação de empresas exportadoras de serviços e, em seu lugar, cria uma dispensável categoria de “prestadoras de serviços vinculados à industrialização de mercadorias a serem exportadas”; e
    3. Não considera a ampliação do escopo do mecanismo, mediante a inclusão de novas desonerações e outros itens beneficiados, que já existem em regimes similares, como mencionado no item 9, acima.
  2. A multa referida no item anterior, além de “desidratar” o programa das ZPEs, é tecnicamente errada, uma vez que as vendas no mercado interno estão previstas na legislação e não constituem nenhum ilícito passível de penalização. Trata-se, na verdade, de uma forma engenhosa dos adversários das ZPEs, de reduzirem sua eficácia, enquanto mantem, publicamente, um falso discurso de apoio ao programa.
  3. Com respeito à inclusão dos serviços exportáveis, o PL 5.957/2013, além de estar aumentando o número de potenciais usuários das ZPEs, está seguindo (sempre com o atraso que nos é peculiar) o exemplo daquela parcela do mundo que costuma ser mais aderente às práticas inteligentes do comércio internacional.
  4. De fato, como vários relatórios do Banco Mundial e a prática de países como a China, a Índia e a Coréia do Sul vêm demonstrando, a revolução das tecnologias da informação e da comunicação abriu um amplo espaço para o chamado “cross border trade”, que está permitindo a “exportação” de determinados serviços sem que seja necessário o deslocamento de profissionais ou o estabelecimento de filiais no país de destino. E isso é totalmente distinto da categoria de fornecedores de serviços (para as empresas industriais localizadas nas ZPEs) criada pelo  referido texto alternativo, que, a rigor, já está contemplada na legislação atual e dispensa normatização adicional.
  5. Não é para ser levado a sério o argumento de que esse tipo de transação não deveria ser estimulado (apesar de seus óbvios benefícios) por ser difícil de controlar. Primeiro, porque já dispomos de um regime especial para a exportação de software e programas de computador – o Regime Especial de Tributação para a Plataforma de Exportação de Serviços de Tecnologia da Informação (REPES) – e de um sistema de controle informatizado das exportações e importações de serviços, que é o Sistema Integrado de  Controle  de  Comércio  Exterior  de  Serviços (SISCOSERV). Segundo, porque nossa Administração Aduaneira conta com técnicos tão ou mais capazes de operar esse controle do que algumas dezenas de países espalhados pela Ásia, África e América Latina, que vão muito bem nessa área.
  1. Caso prevaleça esse texto, a consequência será a aprovação de um regime de ZPEs que beira a inutilidade, com um potencial muito aquém do que tem sido o discurso oficial do governo e as expectativas criadas nos Estados que apostaram no potencial desenvolvimentista de suas ZPEs.
  2. Recentemente, depois de ter assinado o decreto de criação da ZPE de Açu, no Norte fluminense, o presidente Michel Temer postou no seu tweeter que aquele foi “o maior presente de passagem de ano que recebeu” e ressaltou ainda “as potencialidades desse empreendimento que conecta com sucesso o capital nacional com o estrangeiro”. Certamente, o presidente ainda não foi informado – mas vai ser – de que essas potencialidades só se concretizarão se vigorar o texto que está pautado no plenário da Câmara, e não o texto alternativo, que surgiu “no apagar das luzes”, em total desprezo pelo trabalho realizado pelas duas Casas do Congresso Nacional, ao longo de mais de seis anos de discussão e negociação.
  3. De todo modo, numa tentativa de construir uma alternativa de consenso, e agilizar a aprovação de um programa tão importante para o País, o deputado Júlio César (PSD/PI), relator do projeto no plenário da Câmara, propôs uma  redação para o artigo que concentra a divergência central entre as duas visões acima, estabelecendo que as vendas para o mercado interno estarão sujeitas ao pagamento (a) de todos os tributos incidentes sobre a operação; e (b) do Imposto de Importação e do AFRMM incidentes sobre os insumos e outros itens de procedência estrangeira neles empregados, mediante o registro de declaração de importação de mercadoria submetida a despacho para consumo, conforme a regra existente para o RECOF, que é um regime aduaneiro especial parecido com as ZPEs.
  4. A proposta determina ainda que, quando a receita bruta decorrente da venda de bens e serviços no mercado interno exceder o equivalente a 40% da receita bruta total de  venda  de  bens  e  serviços,  a  empresa  fica  obrigada  a recolher, sobre esse excedente, o Imposto de Importação e o AFRMM relativos àqueles itens, com os acréscimos legais devidos, inclusive multa de mora, contados a partir da data de registro da declaração de importação. Ou seja, até alcançar aquele limite, só serão cobrados os tributos suspensos, sem acréscimos, como ocorre com o RECOF.
  5. Esta mudança contempla, parcialmente, a posição dos que advogam a cobrança da multa de mora, qualquer que seja o percentual de venda no mercado interno, bem como a dos que consideram que essa cobrança, além de tecnicamente questionável, inviabiliza a venda no mercado interno, limitando o emprego do mecanismo àqueles poucos casos em que a empresa consegue exportar toda a sua produção. Trata-se, por consequência, de uma solução de compromisso que concilia as visões que estão na base das divergências que têm retardado a tramitação do PL 5.957/2013.

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