Uma Nota sobre o Parecer do Dep. Júlio César, relativamente à MP 973/2020, que trata das ZPEs

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  • O objetivo central desta nota é contribuir para a discussão do parecer do relator da MP no 973/2020, deputado Júlio César, focando em dois principais aspectos: (a) algumas características e implicações do regime das ZPEs; e (b) uma comparação resumida do modelo de ZPE implícito no substitutivo do relator (“modelo do relator”, daqui em diante) com o modelo representado pela emenda 12, apresenta por um parlamentar (“modelo da emenda 12”, daqui em diante). 
  • Primeiramente, vamos caracterizar esses dois modelos. O modelo do relator foi elaborado a partir das emendas recebidas agora e do texto do PL no 5.957/2013, que foi objeto de mais de uma década de discussões e negociação em duas comissões e plenário do Senado e em quatro comissões da Câmara. A essência dessa construção foi a criação de um marco regulatório de ZPEs que seja competitivo (dado que o modelo atual não funciona) e compatível com as normas e a experiência internacionais, bem como (obviamente) com nosso ordenamento jurídico.
  • Já o modelo da emenda 12 apareceu somente durante a votação final na CCJ da Câmara (onde foi derrotado), como um substitutivo ao texto construído no Legislativo, e foi reapresentado agora como emenda na tramitação da MP no 973/2020. No fundamental, esse modelo surgiu como um contraponto ao avanço promovido pelo Legislativo e pretende introduzir alterações meramente formais, de modo a preservar um programa de ZPE “desidratado” e inútil, que só conseguiu implantar uma ZPE em três décadas de existência. 
  • Não são passíveis de contestação os seguintes fatos: 
  • Embora existam fracassos localizados, a experiência internacional sobre esse mecanismo é largamente favorável à sua utilização, como mostram, especialmente, os casos da China (onde existem mais de 2.500 zonas especiais) e dos Estados Unidos, com 262 foreign-trade zones, como são chamadas as suas ZPEs. O Banco Mundial, a UNCTAD, a UNIDO e a OECD apoiaram a implantação dessas zonas em várias partes do mundo. Estamos há três décadas na contramão das políticas inteligentes adotadas por dezenas de países, que utilizam esse mecanismo como elemento central de suas políticas de desenvolvimento.
  • O modelo de ZPE construído pelo substitutivo do relator não cria competição desleal com o restante da nossa indústria, na medida em que as suas vendas no mercado interno estarão sujeitas ao pagamento integral de todos os tributos, inclusive aqueles incidentes sobre insumos importados, e mais uma multa extravagante, além de conter uma “cláusula de salvaguarda”, que permite limitar essas vendas, caso se constate algum prejuízo para as empresas fora das ZPEs. Impossível falar em concorrência desleal e desproteção da indústria nacional, nessas circunstâncias.
  • Em particular, a Zona Franca de Manaus (ZFM) não será prejudicada pelas vendas das ZPEsno mercado interno, por dois simples e bons motivos: (a) como mencionado acima, as ZPEs pagarão todos os tributos normais, enquanto que a ZFM vai continuar pagando zero de IPI e aproximadamente 10% do Imposto de Importação embutido nos insumos utilizados, além de se beneficiar de uma redução expressiva do ICMS concedida pelo Estado do Amazonas; e (b) os dois modelos beneficiam segmentos distintos: nenhuma siderúrgica ou esmagadora de soja vai se instalar na ZFM, da mesma forma que nenhum fabricante de eletrônicos ou de motocicletas vai se interessar nas ZPEs, pagando todos os tributos devidos. A sua lógica é vender no mercado interno, com incentivos fiscais, e exportando só esporadicamente. Os dois modelos não concorrem entre si, portanto.
  • Em inúmeras reuniões realizadas nos dois últimos anos, os defensores dos dois modelos conseguiram se entender com respeito a vários aspectos do programa, mas permanecem divergências essenciais, cuja superação vai requerer uma decisão política sobre se queremos um modelo que funcione ou que apenas dê emprego para uma dúzia de funcionários, que quase nada produzem de útil, durante três décadas. Estas divergências se referem (a) à tributação das vendas no mercado interno; e (b) à natureza dos serviços que serão admitidos nas ZPEs. 
  • Um acordo importante foi obtido com relação à eliminação do“desempenho exportador” – pela Lei atual, as empresas em ZPE são obrigadas a exportar pelo menos 80% de sua produção – ou seja, as empresas ficarão liberadas para vender o quanto quiserem no mercado interno, desde que (evidentemente)  pagando todos os tributos devidos e mais uma multa de mora (de 0,03% ao dia, contada a partir da data do fato gerador) sobre o Imposto de Importação e o AFRMM suspensos nas importações de insumos. 
  • A divergência, no caso, diz respeito à base de cálculo dessa multa. O modelo do relator mantém a base definida na Lei n11.508/2007 (art. 6o-A), ou seja, o Imposto de Importação e o AFRMM, suspensos nas importações de insumos, acrescidos dos juros e da multa de mora. Essa multa vinha sendo contestada (com bons motivos), e agora foi aceita pelo relator. Já os proponentes da emenda 12 querem expandir essa base de cálculo com a inclusão de mais três tributos: o IPI, o PIS e a Cofins. Como se não bastasse, ainda pretendem aplicar a multa também sobre os impostos suspensos quando das aquisições no mercado interno (IPI, PIS, Cofins e AFRMM), hipótese não contemplada na Lei atual (ver arts. 6o-B e 6o-C, da emenda 12).  Como se observa, querem aplicar multa sobre um tributo (o AFRMM), que nem incide sobre aquisições no mercado interno, somente sobre as importações, quando realizadas por via marítima.
  • Resumidamente: a emenda 12 (1) inclui mais dois tributos (que não existem na Lei no 11.508/2007) na base de cálculo da multa, quando das importações de insumos; e (2) cria outra base de incidência de multa quando da aquisição no mercado interno, provisão não constante da Lei atual. A consequência dessa proposta estapafúrdia é que essa base de incidência ampliada resultaria na criação de uma verdadeira “barreira protecionista” nas vendas internas das ZPEs, que não existe quando o produto vem do exterior. Ou seja, estaríamos protegendo mais a indústria doméstica contra a empresas instaladas nas ZPEs, que criam empregos aqui, do que contra as importações, que criam emprego lá fora – o que é um verdadeiro absurdo.
  • Com relação à segunda divergência importante entre o modelo do relator e o modelo da emenda 12 – referente à definição dos serviços que agora poderão ser autorizados nas ZPEs (com os benefícios do regime) – também foi logrado um acordo parcial. Seguindo a moderna e crescente experiência internacional, o modelo do relator propõe que se instalem em ZPEs sobretudo os “serviços exportáveis” (cross-border trade), de setores a serem definidos pelo Executivo. Países como a China e a Índia vem explorando essas possibilidades com enorme sucesso em suas economias. 
  • A emenda 12 contempla apenas uma categoria limitada de serviços – aqueles vinculados à produção de mercadorias– que não exportam e não vendem no mercado interno: só aqueles utilizados pelas empresas industriais instaladas nas ZPEs. O modelo do relator acata essa categoria especial de serviços, mesmo ciente do impacto limitado dessa inclusão, até porque as empresas industriais instaladas nas ZPEs já podem adquirir no mercado interno os serviços que precisarem (ver art. 6o-A, da Lei 11.508/2007).
  • Os proponentes da emenda 12 apresentam dois argumentos em defesa de sua tese – dificuldade de controle e perda de receita -, ambos insustentáveis. Serviços são certamente mais difíceis de controlar do que mercadorias, que são tangíveis, mas dezenas de países conseguem operar esse controle, e não fica bem admitir a nossa incompetência em desenvolver e operar mecanismos de controle que dezenas de outros países conseguem, mesmo aqueles com nível de desenvolvimento tecnológico inferior ao nosso. Até porque já dispomos de um regime similar, que é o REPES (Regime Especial de Exportação de Serviços).
  • Quanto ao argumento de perda de receita, este também cai por terra quando se considera que os impostos indiretos não incidem sobre exportações, como estabelece a Constituição, não importa onde a empresa esteja localizada; e o projeto proíbe a venda de serviços no mercado interno; logo, não há cobrança de tributo para controlar. Então, estes argumentos de perda de receita e de controle, tanto nas exportações como nas vendas de serviços para o mercado interno, precisam ser repensados e melhor estudados.
  • O projeto do relator introduz outros aperfeiçoamentos menores – mas todos com sólidas justificativas técnicas – cuja objeção só se explica pelo desejo não admitido de manter o regime sem atrativos e sem concorrer com interesses estabelecidos.
  • O fundamental a entender é que o programa brasileiro de ZPEs não é competitivo (como mostra seu histórico de desempenho pífio) e não adianta fazer uma reforma “meia-sola” ou um “puxadinho” (já tentamos duas vezes, em 1992 e 2007, ambas fracassadas). Ou promovemos uma mudança significativa, que faça o programa avançar, ou vamos passar mais três décadas anos brincando de ZPEe mantendo uma estrutura administrativa supostamente encarregada da implantação do programa, mas que passou uma década sem inaugurar uma unidade – e não achou nada de errado nisso.
  • As ZPEs são um programa bem-sucedido em quase todo o mundo, recomendado pelos principais organismos internacionais voltados para o desenvolvimento; não cria competição desleal com o restante da indústria; não provoca perda/renúncia de receita; não depende de recursos públicos; e é compatível com as normas da OMC e com qualquer sistema tributário e política industrial e de comércio exterior que o país decida implementar. Poderá, portanto, dar uma contribuição extraordinária para a retomada do nosso desenvolvimento – sem pressionar as contas públicas.
  • A resistência à implantação das ZPEs só se explica pelo insuficiente conhecimento técnico de seus mecanismos e implicações e/ou pela defesa de interesses de setores que, historicamente, tem-se beneficiado do fechamento de nossa economia, e que reagem a qualquer sinalização – real ou imaginária – de introdução de alguma pressão competitiva no sistema, sempre apoiados por seus simpatizantes no governo.
  • O Brasil precisa que seus políticos e dirigentes lúcidos e responsáveis não apenas apoiem o parecer do deputado Júlio César, mas também promovam uma governança profissional e comprometida com a implantação efetiva do programa das ZPEs, e não com a defesa de interesses atrasados, em grande parte responsáveis pela falta de competição e de competitividade da nossa indústria.
  • Não tivéssemos perdido essas três décadas, poderíamos ter acompanhado o exemplo da China – como, recentemente, reconheceu o Ministro da Economia – e promovido outro padrão de desenvolvimento do nosso País, especialmente nos Estados em que as ZPEs foram autorizadas. Ainda podemos recuperar esse tempo perdido.

Helson Braga, Ph.D., presidente da ABRAZPE (13/09/2020).

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